A
galinha burra
Queria te pedir desculpas, Ícaro. Sou toda arrependimento saboroso,
assado, frito ou cozinho, até mesmo cru, por ter me deixado capturar e ser espremida
com outras galinhas alucinadas feitas pela indústria, não pela divindade
perfeita que fez vocês. Minhas ancestrais não aprenderam a voar em direção ao
sol.
Sei muito bem o quanto te prejudico a sociabilidade e o orgulho de si
mesmo quando espicho o pescoço para fora da gaiola e demonstro não compreender
sua insistência naquilo de que já desisti, como velha que sou, uma galinha
velha de dois meses e bico cortado debaixo de uma luz que não me deixa dormir,
desesperada de frente para sua razão e sangue frio superiores, a preferência
onívora, a riqueza dos movimentos motorizados. Enquanto que a minha situação fica
cada dia mais constrangedora. Nem mesmo sei exatamente o que quer dizer a
palavra pecuária, pois não tive oportunidades com a cultura humana.
As emoções nunca me foram frescas e jovens, amor. Acumulei-as ração
nojenta todo o meu corpo, transformado minutos depois deu sair do ovo neste
putrefato estoque de ódio, desespero, incompreensão, esterilidade branca,
infelicidade e medo que me mantem viva e te faz cada vez mais morto.
Embora haja uma luz forte sobre mim o tempo todo, talvez eu não esteja
muito viva, e isso pode parecer um paradoxo. Mas confesso que ainda ontem ou
segundos atrás vi uma galinha de indústria sendo levada para o abate e não me
fez emoção alguma a má sorte da colega. Jubilei o espaço liberado na jaula e
por um triz não desejei minha própria morte, se provavelmente só assim vou ser
toda para você, assada e empalada, mas rodando na padaria como um sol
esplendoroso de beleza dourada.
Sou só para parecer deliciosa para você, para seu nariz gulosinho, para
percorrer os labirintos dos seus intestinos, prazerosas asinhas de frango, os
ossos chupados todo o tutano. E aqui estou para que futuramente eu seja augusta
na digestão da mais nobre das tripas da cadeia alimentar, convertida em queda no
seu glorioso cocô.
Álvaro Dias Cuba